sábado, 23 de setembro de 2017

Feminina fogo fátuo

(Luiz Magalhães)

Menina fogo fátuo da vida

Sal que queima as feras feriadas
Luz que incorpora e que me cega demais

Estrela que vias lácteas infinda
Herença que pago antes da minha partida
Asa branca do luar tão cândido do meu sertão 

Duvidas das minhas mentiras
Acreditas nos papos dos astros
É mais doce que a própria cajuína

Me faz de velho farrapo
Como gata que caça um rato entocado 
Unhas e garras e dentes e mentes
Mirando na minha

Mulher na noite estampada
Com selo de uma lua dourada
No céu teu brilho é alvorada
Voraz, atroz, feroz
Seduz a escuridão 

Feminino força da terra
Do chão brotas e nas águas reinas
Mirra, ouro, incenso e areia

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Cidade Nova

(Luiz Magalhães)

Eu quero uma cidade limpa
Uma cidade iluminada e iluminista
Uma cidade branca, na qual o preto do cinza
Fora devidamente destituído de seu bel-devir

Uma cidade sem exageros, comedida, cordial e cortês
Quero habitar um lugar insípido e inodoro, como a água com flúor
Translúcida, para ver do outro lado
Que ligue ponto-a-ponto, a ponto de desligar-me
Uma cidade em que só se fala o essencial: despoluída sonoramente
Eu quero uma cidade reluzente, esfregada com água sanitária
Uma cidade cômoda e confortável
Onde não há disputas
Da onde eu não possa te ver
Eu quero uma cidade aprazível, aconchegante
Mais plumas de ganso do que asfaltos
Eu quero uma cidade que parou, que me empedra
Eu quero é morar num paraíso!
Quero cânticos que afofem meus ouvidos
Que se encontrem em consonância com a minha vontade
Aquela mesma: estagnada em si
Eu quero uma utopia distante
Que não me dê trabalho a curto-médio-longo prazo
Um não-lugar não-possível de talhar
De rachar
Habitado por uma humanidade incorruptível
Eu quero uma cidade que me ensurdeça
Com seu silêncio tom pastel
Eu quero a paz e a felicidade mórbida daqueles
Que passam a vida filtrando a água do aquário
E que morreram bebendo água oxigenada



sábado, 22 de julho de 2017

Onde se escondem os alto-falantes

A poesia é medo e sedução
Esconderijo e alto-falante
Em silêncio, ela amplifica aqulio que está intocado mas relutante
Sem tirá-lo, porém, do lugar

Ó, poesia, és tu mesma
O estetoscópio dos loucos e dos não-médicos
Respira: uma fobia
Expira: uma paranoia
Grunhe: uma arma
Grita: aquilo que te salva

A poesia tá ali, no núcleo: inlocalizável e impermanente
Mistura-se a tecidos, órgãos, bactérias, glóbulos brancos
E a vida que não é ser: é vírus
Ser desprovido de metabolismo próprio
Mas que já vem com plural

A poesia é bela
Segue, quando quer, padrões estéticos.
Gosta de partilhar o sensível
Ao mesmo tempo em que enfoca, esconde
Ela rega e degola; encontra e perde
Sabe e omite
Mente mas aponta o caminho

Escrever é jogar-se fora
Na calçada
Na rua
Na sarjeta

O poeta é o tipo do cara que entope o ralo
Que traz o esgoto à tona
Que mexe com o lixo

O poeta entendeu, desde cedo
Que o lixo da mente é o luxo na da alma.

sexta-feira, 21 de julho de 2017

Grave idade

(Luiz Magalhães)

Hoje as portas se fecharam
Os grilos se calaram
E o peso ficou mais pesado que a consciência

O dia é cinza
É da cor das cinzas do meu pai
Que eu espalhei na relva das lacunas
Por entre os tijolos das paredes da memória
Expostas
Sem gesso
Sem tinta

Hoje o mundo cai mais rápido que o tempo
Ele corre para o fundo, para o andar debaixo

A força da gravidade é lei não-escrita
É olho por olho; dente por dente
Queda por queda

Meu estômago não é mais o mesmo depois desse livro,
Dessa foto
Desse quadro
Ou dessa música
Eu não sou mais o mesmo depois do passado
E muito menos desse tal de depois: o para-além-do-que-já-passou

Tem regra não
Tem riso só quando a raiva vem do ventre
Tem choro só quando desmorono
Só quando a casa cai
Quando o chão se abre
Quando a gravidade dá o ar de sua graça

Tem santo que dê jeito?
Sei lá
Talvez o mito
Que é a mesma coisa

Tem arroz na mesa
Onde exercemos a nossa sobrevivência
Lá, na mesa
Onde a carne é servida, depois de morta

Na sala de jantar
Na hora do almoço
Tudo é aquela coisa
Dentes apostos
Sangue nos olhos
Estômago em sacia-ação

Digerir a carne é apodrecer-se por dentro